Ruan Félix tem 26 anos e é morador do subúrbio do Rio de Janeiro. Cozinheiro especializado em alimentação à base de plantas, ele faz questão de ressaltar a importância de cozinhar como uma forma de ter autonomia alimentar. Em seu perfil no Instagram compartilha receitas e reflexões sobre um veganismo mais acessível e genuinamente brasileiro, feito com ingredientes do nosso cotidiano. Confira a entrevista que ele deu para a LoveVeg, onde também é colaborador:

O que te incentivou a buscar o veganismo? Como foi o processo de transição?
Eu trabalhava como publicitário numa academia e vez ou outra via no Facebook algumas postagens de uma funcionária de lá, que era vegetariana. Eram coisas do tipo “Se você ama um por que come o outro?” ou “Você não é bezerro pra beber leite”, e eu sempre ficava com a pulga atrás da orelha com essas coisas. Um dia resolvi pesquisar sobre vegetarianismo e caí em vários vídeos sangrentos no Youtube, como os documentários A Carne É Fraca e Terráqueos. No dia seguinte eu decidi que iria virar vegetariano. 

Passou uma semana eu continuava pesquisando e vi que ovos e leite eram tão problemáticos quanto, e então virei vegano. Foi bem rápida essa mudança de hábitos, porque eu só consigo funcionar desse jeito.

Você sempre cozinhou?
Eu entrei para a cozinha por conta do veganismo. Nunca tinha cozinhado na vida, mal sabia estalar um ovo sem fazer sujeira no fogão inteiro. Comecei a cozinhar porque tinha decidido que, se quisesse continuar sendo vegano, eu precisaria cozinhar pra mim mesmo, para não cair doente e minha família cair em cima dizendo ser por minha nova condição. Daí eu, que não comia nem alface, comecei a descobrir e comer uma variedade de alimentos. 

O que te levou a seguir a profissão?
Fui tomando gosto por cozinhar, até o dia em que, por muitos problemas, eu decidi abandonar a profissão de publicitário. Como eu não tinha um plano depois que pedi demissão, comecei a fazer marmitas congeladas para vender, e nessa um cliente foi espalhando para o outro e mais outro. Quando vi, já estava totalmente inserido na profissão.

Como é o processo de elaboração das suas receitas?
Eu não tenho processos exatos de elaboração de receitas, elas a partir de várias referências. São vivências diferentes: o que eu como, o que eu vejo na internet, nos livros que leio… daí eu filtro e ajusto aquilo que faz sentido para mim, sabendo que a base do meu trabalho é uma cozinha contemporânea, brasileira, com raízes suburbanas e alguns toques mediterrâneos.

Hoje você roda o Brasil cozinhando em jantares super especiais. Como foi essa trajetória até chegar nesse lugar?
É, não foi fácil. Eu precisei dar vários passos pequenos e fazer coisas que podem parecer bobas, mas que fazem muito sentido na construção do profissional que eu sou hoje e do trabalho que eu trouxe até aqui. Eu cozinhava em absolutamente todos os eventos que fazia com dolmã, porque indiretamente, isso dava às pessoas o pensamento de que eu era um profissional da área e não só mais uma pessoa que viu nesse mercado uma oportunidade de ganhar dinheiro fácil sem pesquisar, estudar, investir. 

A idade também sempre foi um atraso pra mim, porque dificilmente as pessoas escutam o que um piá de 26 anos tem pra falar, imagina com 22. Então eu estou constantemente em busca de mais informações e referências para falar sempre com propriedade sobre o assunto e para que as pessoas possam enxergar seriedade no meu trabalho. Esses jantares só foram possíveis depois que eu tive uma mínima segurança de que estava passando essas informações corretamente.

Quem são suas maiores referências na cozinha?
Eu tenho mil referências na cozinha, mas acho que tenho uma tríade principal de inspiração, que são a Paola Carossella, Bel Coelho e Helena Rizzo. Elas são chefs fantásticas, engajadas, militantes, levando a culinária brasileira a outro nível! Mas tem outros chefs como o Rodrigo Oliveira, Onildo Rocha, Manu Buffara, Mirna Gomes… 

Na cozinha vegetal eu sou muito tiete do André Cantu. Cantu pra mim é o cozinheiro que eu quero ser no futuro, tratando os ingredientes e as pessoas com o carinho necessário. De chefs internacionais e estrelados eu acompanho demais o trabalho da Anne Sophie Pic e do Alain Passard.

Quais são os planos para o futuro?
Olha, assim como as minhas referências meus planos pro futuro também são muitos. Se vou conseguir tirar eles do papel ou não, já é outra história.  Eu tenho muita vontade de viajar pela Europa e pela América Latina para pegar referências para a minha cozinha. Quero também ter meu próprio espaço para almoços e jantares, mas acredito que esse plano eu só vou começar a tocar em frente quando já tiver enchido a bagagem. 

Além disso eu tenho um projeto com a Thallita Flor, do Banana Buffet, onde nós pretendemos abrir uma casa gastronômica no subúrbio do Rio, em Madureira, para capacitar cozinheiros veganos. É pegar uma galera que tem vontade, talento pra coisa, mas não tem dinheiro para investir em especialização. É o plano que mais está próximo de ser tirado do papel e logo iremos liberar uma vaquinha pra que as pessoas possam colaborar com a construção dessa casa.

Temos visto um aumento da popularidade do veganismo nos últimos anos, incluindo a adesão de grandes marcas alimentícias no chamado mercado vegano. Como você enxerga esse cenário?
Eu tenho um posicionamento muito firme sobre essa questão e vira e mexe falo sobre o assunto no meu Instagram. Eu não sou o tipo de pessoa que quer embarreirar facilidades e comodidades, mas é muito interessante a gente se perguntar sempre “a que custo?”. Esse é um tema muito complexo de se tratar, porque exige reflexões de várias perspectivas.

Eu posso tentar resumir dizendo que eu não gostaria de consumir uma maionese, um hambúrguer, um shampoo, visando libertação animal e esquecendo que existem outras engrenagens se movendo no mesmo momento. Porque vale libertar animais enquanto a mesma empresa explorar crianças em plantações de Cacau? Vale libertar animais enquanto a mesma empresa é responsável por boa parte da poluição da água?

Não existe nenhuma revolução em reproduzir os mesmos modelos deficitários que nos fizeram chegar nesse nível crítico que chegamos. Meu papel como cozinheiro é o de fazer as pessoas voltarem ao início de tudo, fazendo a própria comida, não deixando a indústria ditar o que temos que comer, lendo rótulos, comprando de pequenos, se envolvendo realmente com o que se come. E quanto mais você toma consciência do que é sua alimentação, menos você deixa que empresas inescrupulosas decidam por você.

Revolução pra mim é orgânico na mesa de todo brasileiro, de forma justa, barata, acessível. É ter tempo pra cozinhar sua própria comida, dividir momentos à mesa com a família.

Quais obstáculos acha que o movimento ainda precisa ultrapassar?
Eu acredito que antes de qualquer coisa a gente precisa deixar de ser um movimento umbiguista que luta por libertação animal enquanto pouco se preocupa com outras opressões. Eu realmente não consigo não conectar as lutas, pois para mim todas elas têm a mesma raiz. 

Acho demais que uma das chaves principais para que outras pessoas comecem a simpatizar mais com o nosso movimento é mostrarmos que estamos do lado delas em muitos momentos, é lutando com elas pelos problemas delas e não oprimindo mais.

Político demais pra uma entrevista com um cozinheiro? Talvez, mas em todas as minhas aulas na Gastromotiva eu lembro aos meus alunos de que a profissão deles exige muito mais do que só encostar a barriga no fogão.

Que dicas você daria para quem está considerando o veganismo hoje?
Considere com mais força. Mesmo. Eu acredito demais no veganismo como uma chave de mudança para todos esses problemas que estamos vivendo no momento, sabe? Nós queremos libertação animal e libertação animal só é possível com libertação humana e veganismo pra mim é um movimento que só possui prós: liberta animais, melhora o ambiente, faz a gente repensar nosso consumo (ou deveria, né?), nos apresenta novas possibilidades no prato, e principalmente é a maior contraposição da bancada BBB [do boi, da bíblia e da bala] no Congresso. O que se tem a perder sendo vegano?

E para quem quer atuar profissionalmente, fazendo comida à base de plantas?
Pra quem tem condições eu sempre recomendo fortemente procurar especialização. Eu sei que existem pouquíssimos cursos de cozinha vegana e sinceramente nem recomendo que se faça eles. Recomendo sempre que se faça um curso de cozinha tradicional, porque é esse curso que vai te dar toda a base para que você possa criar com elementos vegetais sem cair em clichês como moqueca de banana-da-terra ou quibe de abóbora.

A culinária tradicional possui ensinamentos milenares, seria prepotente e burro demais da nossa parte enquanto cozinheiros veganos ignorar esses ensinamentos ou achar que não precisamos deles, porque sim, precisamos. Se eu aprendo a selar numa aula de carnes e vejo que selar ajuda a concentrar os sucos, o sabor do alimento dentro dele, eu certamente posso aplicar esse ensinamento a uma berinjela, por exemplo. 

A quem não possui grana pra especialização a dica é sempre estudar. Buscar receitas na internet, pesquisar sobre ingredientes, ler livros, pegar referências no Instagram. E isso de toda e qualquer comida, não só vegana! Nenhum conhecimento é desnecessário e no momento, enquanto no Brasil ainda não possuímos uma grande instituição para formação de cozinheiros veganos é necessário se submeter às escolas tradicionais para que nossos cozinheiros não vivam sempre à margem da Gastronomia.

Como colaborador da LoveVeg, como acha que a plataforma pode auxiliar outras pessoas?
Uma das coisas que mais me deixou contente com o site da LoveVeg foi que existe uma aba especial sobre os “motivos” para ser vegano. É algo que vinha me incomodando algum tempo em alguns sites e perfis porque nós estamos focando demais em consumo e em comida e esquecendo do real motivo pra tudo isso. O fato de contribuir com a autonomia alimentar das pessoas que seguem a plataforma sem deixar de mostrar os reais motivos dessa plataforma existir me deixa bem satisfeito.

Aceitar colaborar com a LoveVeg foi também uma maneira de levar algo “diferente” do que é mostrado em muitos perfis. Quando me procuraram me falaram que a ideia era mostrar o quanto alimentação vegetal pode ser acessível, por isso eu aceitei a proposta e pretendo trazer mais brasilidade pra plataforma, tendo em vista que muito do que vemos é inspirado demais em receitas gringas. São tantos smoothies, overnight oats, berries e kales que a gente tá esquecendo do nosso cuscuz, das nossas pitangas e da nossa taioba.

Guilherme Petro

Jornalista, cozinheiro e professor de culinária, é co-autor do Prato Firmeza – Guia Gastronômico das Quebradas e cria conteúdos sobre alimentação consciente e acessível. Acompanhe mais no Instagram @guilhermespetro.