Veganismo: mais do que alimentação, uma ferramenta de exercício social
Abracei a missão de escrever mensalmente no blog do LoveVeg sobre alguns assuntos envolvendo alimentação, tema que tanto amo e que desde 2011 adotei como profissão, seja como cozinheiro, seja como educador, seja como jornalista. Teremos boas histórias de lugares para se comer boa comida vegana em São Paulo (aqui entende-se realmente toda a cidade e não apenas o seu centro-expandido), entrevistas com profissionais (mas não só) veganas e veganos e, como este texto, algumas reflexões sobre o que se tem discutido sobre alimentação e política ultimamente.
Foi difícil pensar sobre como começar. Tantos assuntos, tantas questões, números, sensibilidades… mas de cara sempre me martelou na cabeça uma frase que tem tudo a ver com o assunto e que seria interessante abordar, principalmente porque a ouvimos e citamos muito por aí:
“Comer é um ato político.”
Concordo plenamente. Mas sempre me pergunto: “tá, mas e aí?”. Será que é tão simples e direto assim? E como faz?
Tão utilizada por ativistas da alimentação, nos seus mais diversos campos de atuação, essas cinco palavras sintetizam bem a importância que tem o exercício deste que é um direito básico da humanidade. Porém, é necessário fazer uma reflexão mais profunda sobre o seu significado e entender a alimentação enquanto uma ferramenta de exercício social e também que pensar de forma política significa levar em consideração tudo que acontece ao nosso redor.
O veganismo, enquanto movimento que visa a libertação animal, pode e deve olhar para toda a cadeia que envolve a produção de alimentos e seus impactos no meio-ambiente e na vida também dos outros seres humanos — assim como qualquer outra vertente ativista relacionada à alimentação.
Segundo uma pesquisa publicada em abril de 2018 pelo Ibope Inteligência, e abordada recentemente na reportagem “Veganismo é coisa de rico?” do Uol Tab, cerca de 30 milhões de brasileiros, que correspondem a 14% da população brasileira que se declara vegetariana. A pesquisa, encomendada pela SVB (Sociedade Vegetariana Brasileira), mostra um aumento aumento de 75% em comparação com a mesma pesquisa feita em 2012.
Podemos perceber que aos poucos a discussão sobre o que levamos à mesa têm ganhado mais espaço na mídia e nas conversas de bar. Seja um debate profundo sobre consumir ou não produtos de origem animal ou sobre o último episódio de Masterchef, estamos falando cada vez mais sobre comida, e isso é ótimo! É partir disso que podemos dar os primeiros passos e avançar para essas discussões para o campo da ação, individual e coletiva.
Mudar hábitos e pensar mais a relação sobre o que consumimos é sempre um grande avanço, afinal “somos o que comemos”, ainda mais enquanto somos bombardeados por uma mídia tendenciosa que desinforma e desencoraja o tempo todo. Mas, depois disso, podemos ir além do lugar ainda “confortável” do final da cadeia de consumo. A primeira coisa a ser repensada é a própria estrutura dessa cadeia de alimentos, veganos ou não. Numa conta bruta, frutas e verduras são mais baratos que proteínas animais, mas será que o acesso a elas é tão fácil assim? De onde vêm os produtos veganos que compramos?
O próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário afirmou que se o Brasil tivesse apenas a produção familiar, ainda assim estaria no top 10 do agronegócio mundial, entre os maiores produtores de alimentos.Ainda assim, existe uma grande dificuldade em aproximar toda essa produção com o consumidor final, uma vez que sem poder de distribuição e carente de mais incentivos do Estado, as grandes indústrias acabam avançando, levando comida ultraprocessada aos lugares mais distantes do país. E, no fim das contas, ainda corremos risco de retornar ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU).
Como resistir nesse cenário? Exemplos nos mais diversos campos não faltam: temos os movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que atua desde 1984, está presente em 24 estados e luta para ser produtor de alimentos sem veneno, sendo o maior produtor de arroz orgânico e agroecológico da América Latina. Em funcionamento desde 2016, o Armazém do Campo, no bairro do Campos Elíseos, foi criado pelo próprio movimento para vender alimentos com origem na reforma agrária popular além de ser local de outros eventos culturais, como encontros, debates, lançamentos de livros e rodas de conversa.
Outros grupos de consumo responsável na cidade como o Instituto Chão, na Vila Madalena e o Feira Livre, na Vila Buarque, que funcionam com custos abertos e vendem produtos orgânicos direto de pequenos produtores, oferecem alternativas à lógica da distribuição em larga escala de supermercados e gigantes da alimentação. Na Ilha do Bororé, Grajaú, está a Ecoativa, que faz a distribuição de alimentos produzidos na própria região por meio de uma assinatura mensal articulada com os moradores do bairro. Vale falar ainda nas nossas feiras livres, importante e democrático equipamento público de distribuição na cadeia, inclusive com as — ainda poucas e longe das periferias — feiras orgânicas.
No Instagram, os irmãos do perfil Veganos Periféricos mostram mostram como é possível ser vegano e de quebrada gastando pouco e se conscientizando mais. Seguindo essa linha, a Cozinha Libertária entrega almoços bons e baratos na Vila Rosário, extremo leste da capital paulista. Na zona Norte, o Sem Conservadores, que entrega comidas a preços acessíveis nas catracas do metrô e também vale citar as pizzadas veganas mensais do coletivo anarquista da Casa da Lagartixa Preta, em Santo André, na grande SP. Política ao pé da letra. No Rio, vale acompanhar a Thallita Flor, chef de cozinha do Banana Buffet, e criadora do blog “Sim, sou vegana e feminista preta!”.
Temos aqui, portanto, exemplos de produção, distribuição e produto final. E isso só para começar. Existem uma infinidade de pessoas e projetos espalhados por aí que estão lutando por uma forma mais justa de produção e consumo. Que bom!
Conhecer, incentivar, consumir, divulgar e apoiar financeiramente — vale frisar este último — esses tipos de iniciativa é fugir da lógica de consumo que incentiva uma indústria agressiva que explora animais e humanos direta e indiretamente todos os dias.
O ativismo em prol do movimento, em uma cidade tão grande e desigual como a nossa, reflexo do próprio país, deve dialogar abertamente e estar sempre atento aos diferentes nuances e recortes sociais, que incluem classe, gênero e raça. Deve acolher e não afastar. Se for encarado apenas como uma dieta ou uma moda, como a mídia ainda insiste em retratar, dificilmente alcançará de fato objetivos mais concretos em busca de uma sociedade mais justa e livre de opressões sobre animais não-humanos e humanos.
Comer é sim um ato político, e política se faz nas bases, se articulando, em diferentes frentes, todos os dias.
Guilherme Petro
Formado em Gastronomia pelo Mackenzie, já passou por diversas áreas dentro e fora dos restaurantes. Foi cozinheiro, garçom e fez gestão até de cozinhas universitárias. É gastrólogo, sommelier, bartender, assessor e fotógrafo de restaurantes, além de técnico em informática e de fazer ponto cruz, entre muitas coisas mais. Ele foi um dos jovens formado em Jornalismo pelo projeto Énois, e é co-autor e hoje coordenador do Prato Firmeza — Guia Gastronômico das Quebradas.
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