Instrumento do Ministério da Saúde pode auxiliar também no caminho para uma alimentação à base de plantas

Em tempos de discussões fervorosas a respeito de novos produtos “veganos” lançados por alguma grande indústria alimentícia e a repetição da frase “quem disse que veganismo é pra ser saudável?” — esta que surge provavelmente como contraponto à associação do veganismo com dietas fitness, que alguns veículos de mídia ainda insistem em fazer — por perfis e grupos que divulgam receitas, é importante refletir sobre a alimentação como forma de expressão cultural e seu impacto na sociedade e na natureza, por mais que, no veganismo, ela já exclua alimentos de origem animal.

Um documento oficial que pode ser fonte de informações é o Guia alimentar para a população brasileira, que teve sua mais recente edição lançada em 2014 pelo Ministério da Saúde em parceira com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP, com o objetivo de auxiliar na compreensão da população sobre o ato de comer.

O que são Guias Alimentares?

O Guia Alimentar é um documento oficial que estabelece conceitos e recomendações de uma alimentação saudável para promover a saúde da população. Essas recomendações podem passar não só pelo ato do consumo de alimentos em si, mas também abordam políticas de saúde e agricultura, resultando em um instrumento para a educação nutricional e alimentar e um importante aliado no combate às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), como hipertensão e obesidade, um dos maiores problemas de saúde pública atualmente.

No site (em inglês) da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) é possível consultar os documentos oficiais, em diferentes formatos, de mais de 90 países. Um marco de referência na época, o primeiro Guia brasileiro foi publicado em 2006 e estabeleceu as primeiras diretrizes alimentares oficiais para a nossa população. De lá para cá, o cenário mudou e, seguindo a recomendação da OMS de atualizar periodicamente as recomendações sobre alimentação adequada e saudável, a segunda e atual versão do documento começou a ser elaborada em 2011 e se baseou em cinco princípios:

1- Alimentação é mais que ingestão de nutrientes

Diz respeito à ingestão de nutrientes, mas não se limita a isso, uma vez que o conceito é mais complexo e está ligado a diversos fatores, como a forma com que alimentos são combinados entre si e preparados, a características do modo de comer e às dimensões culturais e sociais das práticas alimentares. Todos esses aspectos influenciam a saúde e o bem-estar.

2- Recomendações sobre alimentação devem estar em sintonia com seu tempo

Nada de pirâmide alimentar. Com padrões alimentares em processo de constante mudança, principalmente em países emergentes economicamentes, como é o caso do Brasil, é necessário que as recomendações do Guia estejam sincronizadas e levem em consideração as condições de saúde da população e os desafios que precisam ser enfrentados no presente momento.

3- Alimentação adequada e saudável deriva de sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável

Recomendações sobre alimentação devem levar em conta o impacto das formas de produção e distribuição dos alimentos sobre a justiça social e a integridade do ambiente.

4- Diferentes saberes geram o conhecimento para a formulação de guias alimentares

A alimentação engloba uma complexa relação entre suas diferentes dimensões e a saúde e o bem-estar das pessoas. O conhecimento necessário para elaborar recomendações sobre alimentação é gerado por diferentes saberes, dos estudos experimentais ou clínicos aos padrões tradicionais desenvolvidos e transmitidos ao longo de gerações, que também não deixam de ser fontes essenciais para a formulação de recomendações que visam promover a alimentação adequada e saudável.

5- Guias alimentares ampliam a autonomia nas escolhas alimentares

Informações confiáveis sobre características e determinantes da alimentação, e apoio para que pessoas, famílias e comunidades ampliem a autonomia para fazer escolhas alimentares e para que exijam o cumprimento do direito humano à alimentação adequada, uma vez que adotar uma alimentação saudável depende de muitos fatores — de natureza física, econômica, política, cultural ou social — que vão além da escolha individual.

Categorias de alimentos

Dentro do Guia, os alimentos são divididos em quatro diferentes categorias, de acordo com o tipo de processamento empregado na sua produção. Esse processo afeta diretamente o alimento em todos os seus aspectos nutricionais e sensoriais, além do impacto socioambiental causado. Para cada categoria, há uma recomendação da frequência de consumo.

1- In natura

Base para uma alimentação nutricionalmente balanceada e saborosa, os alimentos in natura são obtidos diretamente das plantas e são adquiridos para o consumo sem que tenham sofrido qualquer alteração após deixarem a natureza, como folhas e frutas.

A recomendação é que esse grupo de alimentos, junto ao de minimamente processados, seja a base para uma alimentação saudável.

Ex.: Milho na espiga

2- Minimamente processados

Alimentos que passam por processos mínimos de alteração, como limpeza, remoção de partes não comestíveis, secagem, embalagem, resfriamento, congelamento e moagem, agregação de sal, açúcar, óleos, gorduras ou outras substâncias.

Ex.: Fubá (farinha de milho)

3- Processados

Facilmente reconhecidos como versões modificadas do alimento original, são fabricados essencialmente com a adição de sal ou açúcar (ou outra substância de uso culinário como óleo ou vinagre) a um alimento in natura ou minimamente processado. As técnicas de processamento podem incluir cozimento, secagem, fermentação, acondicionamento dos alimentos em latas ou vidros e salga, salmoura, cura e defumação.

O Guia recomenda o pequeno consumo de alimentos processados, como ingredientes de preparações culinárias ou como parte de refeições baseadas em alimentos in natura ou minimamente processados, pois os ingredientes e métodos usados na fabricação desse tipo de alimento alteram de modo desfavorável a composição nutricional dos alimentos dos quais derivam.

Ex.: Milho em conserva

4- Ultraprocessados

A fabricação de alimentos ultraprocessados é feita em grande escala pela indústria e envolve diversas etapas e técnicas de processamento e muitos ingredientes, incluindo sal, açúcar, óleos e gorduras e substâncias de uso exclusivamente industrial, que atuam como aditivos alimentares cuja função é estender a duração dos alimentos ultraprocessados ou, mais frequentemente, dotá-los de cor, sabor, aroma e textura que os tornem extremamente atraentes.

Quanto ao consumo, o Guia é enfático: “Evite alimentos ultraprocessados”, diz a primeira frase do texto que aborda o assunto. Os motivos passam pelos campos nutricional e social, já que, devido a seus ingredientes, alimentos ultraprocessados são nutricionalmente desbalanceados e favorecem o consumo em excesso em substituição a alimentos in natura ou minimamente processados. Além disso, as formas de produção, distribuição, comercialização e consumo afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente.

Ex.: Salgadinho de milho

Como comprar, como fazer, como comer

Diferentes maneiras de montar um prato, em diferentes refeições do dia, são mostradas, levando em consideração a diversidade cultural alimentar do país. Frutas, vegetais, grãos e outros alimentos in natura são grupos presentes em todas as sugestões. É possível ver até exemplos veganos, com arroz, feijão, angu, abóbora, quiabo e mamão como opção de almoço ou a sopa de legumes, farinha de mandioca e açaí para o jantar. Os exemplos de café-da-manhã também permitem diferentes combinações que resultam em refeições livres de produtos de origem animal.

Para aumentar o leque de variedades na composição das refeições, o Guia se aprofunda nos diferentes grupos de alimentos, dando dicas práticas de escolha na hora da compra, armazenamento, preparo e combinações com outros grupos.

O ato de comer propriamente dito também tem destaque. O contexto, o ambiente, a atenção dada e até a companhia são discutidas nas recomendações. Recomenda-se comer com regularidade, evitando “beliscadas” entre as refeições, que devem ser feitas em um ambiente calmo, que permita a apreciação da mastigação e das sensações causadas pelo alimento, fazendo do ato de comer um momento de tranquilidade e não euforia que pode levar ao consumo excessivo e ao desperdício.

Alguém para dividir este momento também é recomendado, sempre que possível. Seja com familiares, amigos ou colegas, refeições feitas em companhia evitam que se coma rapidamente e também favorecem ambientes de comer mais adequados, pois refeições compartilhadas demandam mesas e utensílios apropriados. Além disso, talvez principalmente, o compartilhamento do ato de comer é um momento muito importante para cultivar e fortalecer laços com quem gostamos.

Claro que nem sempre é possível levar todas essas recomendações ao pé da letra e o próprio Guia aborda isso, desde a adoção de termos menos imperativos (como “prefira na maior parte das vezes” ou “sempre que possível” em vez de “faça isso sempre” ou “coma aquilo”) até a enumeração de alguns obstáculos comuns, como: informação, oferta, custo, habilidades culinárias, tempo e publicidade, sempre com sugestões do que pode ser possível fazer para superar cada um deles.

Embora seja elaborado com um enfoque na questão nutricional e de saúde o Guia possui trechos muito interessantes sobre o impacto da alimentação no meio ambiente e nos animais:

A opção por vários tipos de alimentos de origem vegetal e pelo limitado consumo de alimentos de origem animal implica indiretamente a opção por um sistema alimentar socialmente mais justo e menos estressante para o ambiente físico, para os animais e para a biodiversidade em geral.

A diminuição da demanda por alimentos de origem animal reduz notavelmente as emissões de gases de efeito estufa (responsáveis pelo aquecimento do planeta), o desmatamento decorrente da criação de novas áreas de pastagens e o uso intenso de água.O menor consumo de alimentos de origem animal diminui ainda a necessidade de sistemas intensivos de produção animal, que são particularmente nocivos ao meio ambiente. Típica desses sistemas é a aglomeração de animais, que, além de estressá-los, aumenta a produção de dejetos por área e a necessidade do uso contínuo de antibióticos, resultando em poluição do solo e aumento do risco de contaminação de águas subterrâneas e dos rios, lagos e açudes da região. Sistemas intensivos de produção animal consomem grandes quantidades de rações fabricadas com ingredientes fornecidos por monoculturas de soja e de milho.

Essas monoculturas, por sua vez, dependem de agrotóxicos e do uso intenso de fertilizantes químicos, condições que acarretam riscos ao meio ambiente, seja por contaminação das fontes de água, seja pela degradação da qualidade do solo e aumento da resistência de pragas, seja ainda pelo comprometimento da biodiversidade. O uso intenso de água e o emprego de sementes geneticamente modificadas (transgênicas), comuns às monoculturas de soja e de milho, mas não restritos a elas, são igualmente motivo de preocupações ambientais.

Ao final, o documento sintetiza em forma de 10 passos o conteúdo abordado nas mais de 120 páginas. São eles:

  1. Fazer de alimentos in natura ou minimamente processados a base da alimentação
  2. Utilizar óleos, gorduras, sal e açúcar em pequenas quantidades ao temperar e cozinhar alimentos e criar preparações culinárias
  3. Limitar o consumo de alimentos processados
  4. Evitar o consumo de alimentos ultraprocessados
  5. Comer com regularidade e atenção, em ambientes apropriados e, sempre que possível, com companhia
  6. Fazer compras em locais que ofertem variedades de alimentos in natura ou minimamente processados
  7. Desenvolver, exercitar e partilhar habilidades culinárias
  8. Planejar o uso do tempo para dar à alimentação o espaço que ela merece
  9. Dar preferência, quando fora de casa, a locais que servem refeições feitas na hora
  10. Ser crítico quanto a informações, orientações e mensagens sobre alimentação veiculadas em propagandas comerciais

Mesmo não sendo elaborado especificamente para dietas à base de plantas, como o Guia afirma no trecho abaixo, as recomendações gerais, bem como boa parte das referências utilizadas nas sugestões de refeições e as especificações sobre cada grupo de alimentos podem facilmente ser utilizadas e se aplicam também à uma alimentação sem produtos de origem animal, resultando em uma alimentação saudável tanto no aspecto nutricional individual quanto no social coletivo.:

“Por diversas razões, algumas pessoas optam por não consumir alimentos de origem animal, sendo assim denominadas vegetarianas. A restrição pode ser apenas com relação a carnes ou pode envolver também ovos e leite ou mesmo todos os alimentos de origem animal.

Embora o consumo de carnes ou de outros alimentos de origem animal, como o de qualquer outro grupo de alimentos, não seja absolutamente imprescindível para uma alimentação saudável, a restrição de qualquer alimento obriga que se tenha maior atenção na escolha da combinação dos demais alimentos que farão parte da alimentação. Quanto mais restrições, maior a necessidade de atenção e, eventualmente, do acompanhamento por um nutricionista.

Orientações específicas sobre a alimentação de vegetarianos, assim como no caso de outros tipos de restrição de alimentos, como a restrição ao consumo de leite ou de trigo, não são tratadas neste guia. Entretanto, as recomendações gerais quanto a basear a alimentação em alimentos in natura ou minimamente processados e a evitar alimentos ultraprocessados se aplicam a todos, incluindo os vegetarianos.

O Guia alimentar para a população brasileira também está disponível gratuitamente em formato de audiolivro.

Guilherme Petro

Formado em Gastronomia pelo Mackenzie, já passou por diversas áreas dentro e fora dos restaurantes. Foi cozinheiro, garçom e fez gestão até de cozinhas universitárias. É gastrólogo, sommelier, bartender, assessor e fotógrafo de restaurantes, além de técnico em informática e de fazer ponto cruz, entre muitas coisas mais. Ele foi um dos jovens formado em Jornalismo pelo projeto Énois, e é co-autor e hoje coordenador do Prato Firmeza — Guia Gastronômico das Quebradas.