Entrevista com Kamili Picoli, chef do Vaca Ateliê Culinário
Com experiências do underground pelos antigos festivais da Verdurada a passagens por restaurantes como Apfel e Azotea Matilde, em Santiago, Kamili Picoli hoje comanda o Vaca Ateliê Culinário, um restaurante que surgiu após o enorme sucesso dos antigos Boteco Vegan e Padoca Vegan.
Com releituras de pratos clássicos e um cardápio com alguns dos melhores doces de São Paulo, o Vaca se tornou um dos principais pontos de comida vegana da cidade. O projeto completou três anos de história em abril deste ano e a Animal Equality conversou com a chef sobre esse percurso.
Como conheceu o veganismo?
Eu sou vegana desde os 11 anos. Sou alérgica a lactose e a carne de porco e boi, então eu só comia algumas coisinhas de frango e de peixe mas não gostava muito. Foi vendo um programa de pesca com o meu pai que eu percebi que eles sofriam. Não dava mais para continuar consumindo e foi aí que eu deixei de comer carne.
Fui entender o que é veganismo aos 14 anos, quando me envolvi com o punk hardcore e conheci o festival Verdurada. Conheci o coletivo que organizava os festivais e foi ali que entendi que as pessoas estavam fazendo o mesmo que eu, de uma forma muito consciente e política. Comecei a me envolver mais e aos 16 anos fui morar num coletivo do Fora do Eixo.
Você já cozinhava?
Cozinhava desde criança, mas foi dentro do coletivo que eu comecei a cozinhar para outras pessoas. Decidi que ia usar a cozinha como uma forma de ativismo quando percebi que era muito mais fácil “convencer” as pessoas a considerarem o veganismo cozinhando para elas, fazendo uma comida boa, como uma forma de amor mesmo, e não falando que é horrível comer carne, por exemplo.
Me voluntariei para preparar os jantares das Verduradas e aí começou a minha jornada na cozinha. Depois que eu saí do coletivo, passei uma temporada no Chile e trabalhei em um restaurante. Quando voltei pro Brasil, trabalhei num hostel/pub e lá que eu comecei a fazer o Boteco Vegan, de onde surgiu o Vaca.
Como foi o começo do Vaca?
A gente começou a fazer os Botecos Vegans porque era uma coisa que eu sentia falta. Ir a um lugar beber uma cerveja, um bom drink e comer alguma coisa que não fosse batata frita.
Do Boteco começamos a fazer outros eventos, como hamburgada e noite da pizza, e aí surgiu também a Padoca Vegan, tudo isso por demandas que eu sentia. A Padoca rompeu e as minhas antigas sócias continuam lá, mas o projeto com a minha proposta e a minha equipe vieram comigo e a gente conseguiu juntar tudo e virar o Vaca.
Porque Vaca?
Começou como Vaca Preta Vegan, que era uma coisa super do hardcore, e a gente decidiu ir por um outro lado e mudar para Vaca Ateliê culinário. Tiramos o vegan do nome, para justamente tentar ter uma abertura maior com um público não-vegano.
Quando eu tive a ideia do nome Vaca, primeiro foi porque é um animal que eu gosto bastante, e também porque acho que tem uma imagem muito forte e usada de uma forma muito errada, com uma construção machista, sexual e carnista. O homem ser um touro é sempre positivo. A mulher é sempre negativo quando você se refere a um animal. Uma mulher você ofende chamando de vaca.
Além disso, sempre a imagem do touro é imponente, forte, enquanto a vaca é sempre a vaquinha malhada inofensiva que vemos até a porta do açougue. Quando a gente desenhou o logo, era uma vaca puta da vida porque é assim que elas estão, é assim que as mulheres estão.
Como foi a recepção do público ao longo dessas mudanças?
A gente começou nesse espaço com jantares temáticos, e passamos praticamente dois meses não recebendo quase ninguém, porque mudamos completamente a proposta. Eu não queria mais o boteco, não queria mais vender batata frita na hamburgada. Já tinha uma experiência diferente, já tinha trabalhado em restaurantes fora daqui e queria realmente trazer uma sofisticação para o que a gente tava fazendo.
Isso gerou uma perda do público que a gente já tinha. As pessoas chegavam e perguntavam se não tinha coxinha e as coisas do boteco, mas eu não queria mais fazer isso. Sinto que muita gente enxerga o Vaca como um espaço elitista, porque a gente serve as comidas em pratos bonitinhos, etc. Só que eu acho que no período dos anos 90 até meados de 2015 o veganismo cresceu no fast food, por isso a gente tem tanta hamburgueria, tanto salgado, e a nossa ideia é realmente tomar a comida de verdade.
Acho que o justo e o ideal não é só comer só porque a gente tem fome. Se eu tenho fome, vou lá no McDonald’s pego lanche rápido e como. Mas a gente come por prazer, para desfrutar como um ritual mesmo, de sair pra comer, se vestir para ir até o lugar, do mesmo jeito que o lugar se vestiu para receber.
O Vaca pra mim é isso, a gente se veste para receber as pessoas, escolhendo a cor da parede, o tipo de planta ou as louças que a gente oferece, para realmente trazer de volta um pouco essa coisa ritualística, do aconchego. Ver a comida não só pra matar a fome, mas como uma fonte de prazer.
Vocês tem um grande público que pessoas que não são veganas?
A maioria do nosso público é de pessoas não veganas. Pessoas interessadas no movimento. Nós não temos “vegan” no nome. É um restaurante, e ele é bom, e não é só porque é vegano, modéstia a parte. Perdemos um público mas ganhamos outro. Ainda tem gente que acompanha a gente desde o início, mas a maior parte é um público novo, que conheceu o Vaca como ele é agora.
O vegano da família, que comia batata frita na padaria da esquina, hoje tem a opção de trazer toda a família e o grupo de amigos para cá, que era algo que não acontecia antes. E essa é a nossa maior missão. É isso que me deixa louca todo dia, pensar que todo mundo que vem aqui tem que sair completamente satisfeito. Tem que ser o lugar mais incrível do mundo, para que essa família volte aqui na semana seguinte ou vá em outro lugar vegano e não pensar que “esses lugares veganos são uma merda, então vamos voltar para a padaria da esquina”.
Como é o processo de criação dos pratos?
Quando começamos os jantares, a minha ideia era só ter pratos autorais, coisas completamente mirabolantes. Mas eu percebi que talvez aquele não fosse o momento pra isso. Foi aí que eu comecei a fazer os pratos clássicos, que eu também tinha mais experiência. Sempre dando o meu toque, o foco é sempre trazer versões de pratos que são clássicos.
Hoje a gente tem no menus pratos como lasanha, risoto e spaghetti ao molho branco, por exemplo. Pratos muito clássicos, e que principalmente são pratos muito “não-vegans”, por ter muito queijo, por ter bacon ou presunto. A gente tenta veganizar isso mantendo o mais clássico possível, justamente para trazer essa memória afetiva. A ideia é que eles sejam tão bons ou melhores que os pratos que não são veganos.
Nunca fiz nenhum curso, sempre estudei sozinha. Pesquiso em livros, principalmente nos antigos, onde encontro as maiores referências de clássicos. Faço muitas pesquisas e testes e me baseio principalmente na culinária italiana e mediterrânea.
Como começaram os cursos no espaço?
A gente tem uma demanda de cursos faz tempo mas eu não me sentia preparada. Quando comecei a dar cursos percebi que, por mais que eu não me sentisse preparada, seria egoísmo da minha parte não compartilhar com as pessoas.
Minha ideia é compartilhar cada vez mais. Posto algumas coisas no Instagram mas dá bastante trabalho. Toda vez que eu posto algo fico muito feliz com o retorno das pessoas, então por mais que tenha muita gente fazendo receitas, elas estão sempre buscando de fontes diferentes.
Também quero publicar um livro. Uma compilação das receitas do Vaca, porque não é todo mundo que pode vir até aqui fazer um curso presencial.
E o projeto da Xepa Colaborativa?
Isso é uma coisa que eu sempre fiz aqui. Quando sobra comida a gente distribui para as pessoas. Quando eu decidi divulgar, rolou um conflito. Não queria ficar divulgando isso para mostrar que “olha como somos caridosas e incríveis”, mas esse tipo de ação influencia outras pessoas. Se cada restaurante vegan que a gente tem em São Paulo fizesse isso uma vez por mês, a gente já teria muito menos gente com fome, então ao começar a divulgar e convidar as pessoas a participarem, talvez possa influenciar outros lugares e pessoas para fazer o mesmo.
Na xepa colaborativa, convidamos as pessoas para vir ajudar a distribuir, realmente para as pessoas verem que quem está em situação de vulnerabilidade também tem gosto. Claro que toda ação é válida, mas toda vez que vejo alguém fazendo alguma ação de distribuir comida, é sempre sopa. A gente ignora completamente que as pessoas têm gosto, que as pessoas talvez não gostem de sopa e que talvez no calor de 40°C elas não queiram comer sopa.
O que a gente procura fazer é levar a comida com uma apresentação bonita, numa marmitinha linda, uma comida saborosa, caseira e que realmente traga para elas outras experiências.
Tem planos para o futuro do Vaca?
Quando o Vaca começou a ficar mais sério, eu e meu sócio decidimos que queríamos ter um espaço no interior para abrigar animais e também pessoas em situação de risco, principalmente mulheres. Um lugar que fosse uma casa de apoio, combinado a um hostel-fazenda, um espaço vegan.
É uma ideia que ainda precisa ser muito bem construída, mas o que estamos fazendo agora é apenas o caminho, não o final. Ter o espaço aqui agora e alimentar ele como a gente alimenta é só uma parte do que a gente pretende percorrer.
Para isso, me dei um prazo de dez anos, porque ainda tem muita coisa que eu preciso entender, aprender e melhorar aqui neste espaço pra ter algo maior, e também eu só tenho 24 anos.
Às vezes dá um certo desespero, mas a gente tem que respeitar o nosso tempo. Acho que a gente se cobra demais, de fazer tudo sempre perfeito o tempo todo e tudo que a gente tá fazendo é muito novo, principalmente no veganismo, então acho que temos que ter paciência com a gente. Entender o nosso tempo e o caminho a percorrer.
Quais outros lugares você frequenta e gostaria de indicar?
O Salad Days é um lugar que eu vejo crescendo e aumentando a demanda, com pessoas que vejo fazendo as coisas pelo mesmo motivo que nós e que estavam lá desde o começo no hardcore. Tem também o Urbã, do André Vieland e do Fausto Oi, que são pessoas que estão desde os anos 90 falando de veganismo e que agora tem um espaço muito bacana.
Um lugar não vegano que eu enxergo muito bem é o Futuro Refeitório, especialmente pela abertura. Acho que a mudança acontece aos poucos e é legal esses lugares, esses chefs que dois anos atrás não participavam desse debate sobre veganismo e hoje levam isso em consideração. Já é uma vitória.
Você sente que as discussões sobre veganismo têm crescido nos últimos anos?
Muito mais. Quando eu me tornei vegan, estava dentro desse meio do punk/HC e era só ali. Em qualquer outro ambiente eu era a estranha. As pessoas não sabiam o que era nem o vegetarianismo, isso aqui em São Paulo mesmo.
Hoje, existe uma demanda muito grande que vem trazendo cada vez mais oferta e também pessoas interessadas a conhecer a comida vegana, mesmo que elas não sejam.
Quais você ainda enxerga como os principais desafios do movimento?
Acho que o mais difícil é tirar a máscara elitista do veganismo. Claro que temos vários movimentos veganos acontecendo, como o negro, o da periferia, mas, no fim das contas, se você abre o seu Instagram e vê todo mundo que é influente dentro do meio vegano, vai ver que são mulheres loiras brancas dentro dos padrões.
A identificação é importante, o veganismo é muito elitista ainda e fica muito centrado na classe média. Podemos ter essa impressão de que o veganismo está aumentando e crescendo, mas ele continua concentrado na classe média.
Quais dicas daria para que está conhecendo e considerando o veganismo?
Acho que a principal dica que eu dou é ter empatia pelo outro e principalmente pelas futuras gerações, que vão herdar esse planeta, no que a gente quer deixar. Se a gente consegue pensar dessa forma e se colocar nessa posição, tudo fica mais fácil e a gente consegue. No fim, são só 15 minutos que você passa comendo um bife. Prazeres tão pequenos comparado ao tanto de danos que podem causar.
O veganismo é muito mais sobre o outro do que sobre a gente. As pessoas pensam muito “ah, eu não quero ver esse filme sobre animais morrendo pq talvez eu pare de comer carne”. Sim, é sobre o outro, não sobre você.
Guilherme Petro
Jornalista, cozinheiro e professor de culinária, é co-autor do Prato Firmeza – Guia Gastronômico das Quebradas e cria conteúdos sobre alimentação consciente e acessível. Acompanhe mais no Instagram @guilhermespetro.
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